sexta-feira, 21 de julho de 2023

O Espelho e a Luz

Isabel Pires 

— Eu sou a aparência, diz o Espelho, refletindo mil cores.

— E eu sou sua essência, diz a Luz, repartindo as sete cores.

O que seria do Espelho vaidoso sem a Luz que lhe dá feição?

E a Luz? Perderia tanto tanto 

do seu encanto

se não houvesse

espelho das águas

espelho de moça

espelho de Narciso

por onde andar, cair, refletir, ponderar

e repartir multiplicar admirar

as suas cores

as suas dores

seus amores 

seus horrores.

E assim

nesse casamento sem cartório

sem padre sem igreja sem juiz e sem juízo

apenas a Luz sabe 

ser a sua quintessência

somente o Espelho sabe

onde está a transparência.

 

terça-feira, 18 de julho de 2023

Meia doida

 meia pataca

meia-hora
meia touca
meia-boca
meia lua
meia-noite
meia de seda
meia soquete
"meia moça" (Machado de Assis)
sutiã meia taça
meia-idade
meia calça
meias medidas
meia xícara
meias palavras
meia verdade
meia estação
parede meia
meia sola
sapato meia pata
meia morte
meia vida
meias tintas
meia direta
meia esquerda
meia légua
meia cava
meia-água
meia-irmã
meia portuguesa, meia marguerita

domingo, 19 de março de 2023

À sombra do apocalipse

Choveu sangue das tetas de Deus

ao som de um stradivarius

desafinado

choveu pétalas de rosas que se tornaram tarântulas

e derramaram tênue veneno sobre as santas nuas

do místico circo.

 

Choveu  estrela devida

              e indevida

choveu – a tarde inteira –

virtuosas cascatas

vermelhas

fogueiras afrodisíacas que se desmanchavam a um sopro

leve.

 

Choveu pequenos mártires alados

equipados com sangue róseo

e doce.


quarta-feira, 8 de março de 2023

A manhã

Isabel Pires

 

A manhã

é uma mulher de cara branca

que entra pela janela

sem pedir licença

e sem aviso prévio

com ar severo

nos põe pra fora da cama 

sábado, 24 de dezembro de 2022

Terra é pão

Isabel Pires


Terra

é

pão.

 

Vamos dividir a terra?

 

Vamos

di   vi   dir

a terra.

 

V A  M  O  S

DI VI DIR

T  E  R  R  A

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Flagrantes noturnos

Isabel Pires

I

As luzes da cidade

rasgam meus olhos

que se tornam vermelho-de-sangue.

II

O carro desliza

sobre o tapete negro do asfalto.

À sua frente, piscam as luzes dos carros

que vêm em sentido contrário.

Já é tarde.

III

Passam postes

pedaços de paredes

recortes de calçadas

sem-teto

prostitutas

estudantes

trabalhadores.

Distante de tudo,

os neons coloridos contra o fundo preto.

 IV

Tudo quieto.

A noite está calada.

Esburacando a escuridão,

a lâmina afiada de uma luz

acende-se numa sala.

V

A noite, calada e preta,

dorme debaixo de uma coberta quente.

Nos meios-fios,

em cima das camas,

nos bancos das praças,

sob as marquises,

a noite, calada e preta, envolve tudo

como uma coberta quente.

Faz calor.

VI

Faz calor.

Apesar disso, a fumaça do chuveiro

invade os azulejos, impregnando vapores.

É noite quente.

Mas o chuveiro canta

uma canção de inverno.

É noite.

O chuveiro quente

nina os corpos num acalanto quieto.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

O gato

Isabel Pires

Um gato cinzento

ia andando por um muro um pouco mais cinzento

com passos ritmados abanando a cauda

e eu, cinzenta, ia andando pela calçada molhada

quando vi o gato

quando o gato virou o pescoço pro meu lado

e me viu

e então agitou mais a cauda

quebrando o ritmo dos seus duplos passos

e fugiu assustado

fui um acontecimento para o gato cinzento

que fugiu com o coração quente batendo

mas o que me ficou no cimento

frio e molhado?

O Espelho e a Luz

Isabel Pires   — Eu sou a aparência, diz o Espelho, refletindo mil cores. — E eu sou sua essência, diz a Luz, repartindo as sete cores. O qu...